09 outubro 2006

A Hora


Qual será a hora do dia ideal? A hora em que se põe o sol, hora de cores e descanso, de encontro com a “casa” de cada um… a hora da noite, com as estrelas, a casa imensa do céu e do sonho, a grandeza que não põe limites… a hora da tarde, e a hora da manhã, que são afinal as horas do dia, das pessoas, dos trabalhos, das alegrias e tristezas correntes… as horas da madrugada, de sono e de sonho, de festa e de solidão…

Este homem olhava o relógio há uma semana e ia tomando nota da casa de cada hora, como um horário, mais do que com coisas a fazer, com momentos a viver… e todos eram importantes! Mas porque é que nenhum era a Hora do dia?

E então decidiu… vinte e quatro horas non stop, de caderninho na mão, a tomar nota de tudo. Levantou-se à hora do costume e começou a escrever o dia. Chegou atrasado a primeira aula da manhã, mas não havia problema, estava a fazer os seus exercícios… Nas aulas nem sequer olhava para os professores, na mesa do almoço, não ria com as piadas e despertava olhares incrédulos por parte dos colegas: este hoje não está bem… larga o caderno! E ia escrevendo, de tarde, ao por do sol, sozinho na varanda de casa, não prestou atenção ao filme que dava essa noite e que um amigo tinha até vindo de propósito para ver com ele, e a meio se foi embora confundido. Saiu para a rua e foi para um lugar solitário onde ia escrevendo o seu dia, o que sentia, o que via. E ficou à espera das horas intermináveis e frias da madrugada… deixou cair o caderno e adormeceu… vencido pela espera…

E um raio de luz despertou-o… no cimo do monte onde estava via a planície imensa que pouco a pouco ia passando de cores escuras a cores claras… a luz ia avançando lentamente… e começavam a passar carros pela estrada ao longe, uma mulher saia com um cântaro, o pastor passava com algumas ovelhas, abria-se uma ou outra janela das casas que via ao longe. Tinha que recomeçar a escrever! E pegou no caderno. Mas o que tinha escrito estava quase imperceptível apagado pela humidade da noite… fez o esforço de ler, para recordar o ponto em que estava e só via verbos: vi, senti, olhei, passei, toquei, ri, chorei… E chorou, porque em todo o dia anterior não havia um único verbo que estivesse noutra pessoa a não ser a primeira pessoa do singular. O dia mais atento da sua vida fora o dia mais egoísta… não se lembrava da cara das pessoas com quem tinha estado, nem das coisas que lhe diziam… inconscientemente lembrava-se de algumas perguntas: que estás a fazer? Ouve-me! Ajuda-me! Tens um segundo? Olá! Trouxeste o que te tinha pedido? O que é que se passa contigo?

O dia mais completo que ele quis viver, resultou ser o mais cego da sua vida… o seu mundo era o seu caderno, agora quase desfeito….

E olhou em frente, para a paisagem cheia de sol, a primeira hora da manha… Aquela hora que quase nunca se vive, e descobriu que aquela era a Hora! Cada dia em que sai o sol fazia-o deitar fora o caderno das suas coisas… não podia continuar a escrever o que ia suceder, porque, no fundo já sabia… avançar para o dia sem o caderno, sem o programa, era tão novo… e assustou-se, mas quis experimentar.

E ao longo do dia foi dando conta que cada rua que passava, cada pessoa que via, cada gesto que fazia, era um novo raio de luz que entrava no dia… e que era possível que a primeira hora da manhã durasse todo o dia… E teve o dia mais bonito da sua vida, em que os acontecimentos mais comuns eram vividos com surpresa, as pessoas eram oportunidades de vida, as tristezas eram diluídas na esperança de que também elas estavam iluminadas… por um olhar novo, sempre novo…

Chegou a casa. Antes de adormecer, pegou no caderno que todo o dia esteve esquecido no bolso. Rasgou as folhas até que ficou apenas a ultima… e nela desenhou o sol… o diário do passado, do presente e do futuro.

E a partir daí esse homem viveu cada dia feliz, dia-a-dia, entregando-se à novidade de todas as coisas. Sem se desesperar que as coisas menos boas lhe iam tirar a luz, porque só por as viver, já estavam iluminadas.

Um dia entrou numa capelinha, onde não havia ninguém. Ao fundo, Jesus na cruz… e o sol que entrava pela única janela iluminava em cheio o rosto e o sorriso. Os olhos de Deus olhavam o coração do homem… e ele percebeu, e sorriu…

“Será que não sabes que deixas fugir o que a vida te dá para sorrir?”

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