Sugestão de Nise
Há uns meses atrás, o António Valério pediu-me para eu escrever alguma coisa sobre o Canto Gregoriano. Comecei a escrever… mas depressa abandonei aquilo que tinha começado. Já existem tantas introduções ao Canto Gregoriano que a minha não traria nada de novo. Toda a gente sabe mais ou menos o que é o Canto Gregoriano, e a internet pode ser uma preciosa ajuda para quem quer aprofundar estes e outros temas. Também não queria entrar em polémicas nem em contrastes ideológicos que, quando se trata de uma realidade mística e sagrada como a Liturgia, só nos podem fazer mal. Tenho a firme convicção de que fazer da Liturgia uma questão ideológica, de esquerda ou de direita, conservadora ou progressista, é uma profanação. Não nos podemos esquecer que a Liturgia é de ordem mística. É dom de Deus para nos tocar de salvação… e o Canto Gregoriano não é um absoluto.
Por isso escrevo algo muito diferente… pessoal… uma experiência de vida e da Vida, onde também entra o Canto Gregoriano.
Era a Noite de Natal. Começava a celebração na Basílica de S.Pedro no Vaticano presidida pelo Papa. O toque de Deus atingiu-nos logo desde o primeiro momento da celebração (para não falar da preparação…). Em vez de uma esfusiante canção natalícia de centro comercial, fomos envolvidos por palavras sagradas, que se exprimiam num música interior, profunda, expressiva, contida, sóbria e comovente. Era a tradicional antífona de entrada da Noite de Natal em Canto Gregoriano: Dominus dixid ad me: Filius meus es tu. Hodie genui te (O Senhor disse-me: tu és meu Filho. Eu gerei-te hoje)…
Senti-me imediatamente tocado pelo Mistério do Natal: naquela noite cantávamos o mistério tremendo da nossa real participação na divindade. A antífona põe na boca de Jesus a expressão do salmo, mas, ao ser cantada por nós hoje, já não cantamos um evento histórico encerrado no passado. Cantamos a nossa participação no mistério de Jesus Cristo no nosso hoje, que na Liturgia se torna um Hoje de salvação, de real participação. É verdade: com aquelas palavras eu cantava comovido o amor louco de Deus que me tocava e abraçava de sentido e de salvação. Naquela noite eu já não era mais um ser tocado de tantas fragilidades e doenças, apenas nascido e já a declinar para a morte, porque naquela noite o Senhor disse-me: tu és meu filho. Eu gerei-te hoje!
A celebração prosseguiu. Depois da belíssima e comovente homilia do Papa ficámos em profundo silêncio a meditar nas suas palavras. Ele falava-nos de Deus… que se fez criança… para que não tivéssemos medo dele…
A celebração prosseguiu. Depois da belíssima e comovente homilia do Papa ficámos em profundo silêncio a meditar nas suas palavras. Ele falava-nos de Deus… que se fez criança… para que não tivéssemos medo dele…
Depois de um profundo silêncio meditativo levantámo-nos para o canto do Credo. Era o Credo gregoriano da Missa de Angelis. E porque Deus tomou a sério a Encarnação, naquela noite também nós tínhamos que sentir no nosso corpo o tremendo mistério no qual estávamos a participar. Cantámos o Credo até às palavras Qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de caelis (Por nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus). Terminadas aquelas palavras suspendeu-se o canto…
Naquele momento Papa ajoelhou-se em profundo recolhimento, e com ele a multidão que rodeava o altar da Basílica, que ficou completamente silenciosa. Como todos os outros, também eu estava com os dois joelhos no chão de mármore frio e duro, com os olhos fechados… e numa paz profunda…
Naquele momento os miúdos do Coro da Cappella Sistina começaram com muita delicadeza a cantar as palavras do Credo Et incarnatus est de Spiritu Sanctu ex Maria virgine, et Homo factus est (E encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, e se fez homem)...
Já não era a famosa melodia gregoriana que tinha ficado interrompida, mas uma moderna composição polifónica belíssima… Tinha a leveza e o dançar delicado das nuvens perfumadas do incenso… era música… mas cheia de silêncio…
Quando as palavras do canto chegaram ao fim, … et homo factus est (e se fez homem), nós continuávamos ainda com os joelhos teimosamente plantados no chão de mármore frio e duro, com os olhos cerrados e comovidos… Tinham terminado as místicas palavras que narravam a Encarnação da Palavra… As palavras tinham-nos deixado e a música tinha cedido completamente o lugar ao silêncio… mas nós não tínhamos ficado sozinhos:
naquela suspensão do tempo, da acção e da música,
sentíamo-nos verdadeiramente envolvidos e abraçados pela protectora nuvem da Presença,
num silêncio profundíssimo,
a jorrar de bondade e de consolação,
de alegria e de paz…
(Era a noite do Deus-connosco…)
Fernando António,sj
PS: Adiciono um vídeo, precisamente do momento que o Fernando fala, na Missa de Natal na Basílica de S. Pedro.
4 comentários:
...Fernando...dá gosto ouvir-te falar...foi uma boa inspiração que o António Valério teve quando te convidou a escrever algo sobre o «Canto Gregoriano»...
penso que no fundo o que o António Valério te queria propor era precisamente a partilha do passo de Deus pela tua vida...
o teu testemunho pessoal é eloquente e penso que é a verdade do Mistério que se impõe à vida...
Gosto de canto gregoriano e gosto de incenso nas celebrações.Por vezes não sei o significado do que escuto,mas dá-me interioridade.Este canto gregoriano do post está belíssimo.
Grata deixo um abraço na Paz
Fiquei imensamente feliz ao deparar-me hoje com esse texto no “cidade eterna”. Gosto dos cantos gregorianos e perturba-me vê-los, às vezes, em desuso. Acho que traduzem bem o espírito da Igreja. São fortes, vigorosos, solenes, mas ao mesmo tempo suaves. A mim transmitem paz, segurança (talvez por evocar a presença da Igreja), ajudam-me a relaxar, aquietar a mente e o coração e a colocar-me em oração. E são mesmo belos!
Obrigada Pe. Antonio Valério e Fernando Antonio. Um grande abraço.
Convido os que gostam de canto gregoriano a visitar a minha página onde encontrarão muita informação e músicas: www.gregoriano.org.br
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