20 março 2009

Contemplação na vida de hoje


(sugestão de Bento Oliveira)

O nosso dia-a-dia é demasiado cheio e o tempo não chega para aquilo que queremos. Estamos sempre a queixar-nos disso, porque é que o dia não tem mais horas. O grande problema da contemplação está na consideração de uma série de pressupostos que é essencial termos em conta. Há muitos conselhos práticos sobre modos de fazer oração, escrevem-se todos os anos imensos livros sobre isso. Mas há aspectos que devemos ter presentes antes de colocar essa questão, e aos quais me vou referir:



- Temos uma concepção utilitarista do tempo. O tempo serve para fazer qualquer coisa, obter um resultado. A velocidade das nossas acções e das nossas expectativas exigem uma resposta rápida e imediata. Mas o tempo de Deus é diferente. Ele é infinitamente mais paciente que nós, e nós não somos pacientes. Uma imagem do tempo de Deus vem expressa, como há tempos ouvi um professor dizer - que me abriu imensos horizontes - numa expressão de S. Paulo. Ele escreve assim: "Digo-vos,porém, irmãos, que o tempo é breve" (1Cor 7,29). A expressão "é breve" no original grego, não quer dizer que demore pouco tempo, ou faltem algumas horas ou dias para algum acontecimento. S. Paulo usa um verbo utilizado na navegação, que significa amainar ou recolher as velas de um barco. Quer dizer que o tempo se recolhe, se dobra sobre si mesmo, e a eternidade de Deus, como uma vela infinita, condensa-se no momento presente. O tempo de Deus no nosso tempo é esta eternidade oferecida à nossa contemplação. Este é o tempo da oração, segundo o tempo de Deus.


- Por isso, a oração não é um tempo contado, tirado a ferros à nossa disponibilidade, mas é o tempo entregue. É estarmos presentes em profundidade, indo além de nós próprios. Não é regatear minutos e esperar paz de espírito ou comunhão com o mundo e os outros. É um momento de verdade, em que a eternidade está presente com uma força ao mesmo tempo doce e devastadora. Não se encara este tempo com um relógio a servir de escudo, mas de peito aberto a todos os ventos que surgirem. Deus joga-se todo em cada momento do nosso dia, mas na contemplação é quando estamos totalmente disponíveis a perceber isso.


- A contemplação não é uma coisa exclusiva de padres e freiras. Aliás, todas as religiões, e o cristianismo não foge à regra, privilegiam o tempo de contacto com a divindade. Em orações e momentos do dia mais ou menos estruturados, mas que é uma espécie de respiração vital da própria religião. Não existe um cristão no sentido mais forte da palavra, se não tem este contacto único e pessoal com Deus. Rezar a partir da Bíblia, ou ir à Missa, são partes essenciais da fé, mas estou a falar do nível mais profundo, a minha Vida diante da Vida de Deus.


- Por isso, querer contemplar, em qualquer estado de vida, solteiro, casado, ou religioso, é uma opção de fundo. Acredito que é a opção mais autêntica e que expressa mais a nossa força de vontade e o querer alargar os nossos horizontes além do impossível. A base da contemplação é a convicção que Deus está e trabalha em nós, independentemente se rezamos meia-hora ou cinco horas. O tempo de Deus, como disse, é muito diferente do nosso. A Deus basta tocar, na sua eternidade, um minuto do nosso tempo para mudar toda a nossa Vida. Não sei até que ponto acreditamos nisto... Jesus diz no Evangelho que a fé move montanhas. Porque não havemos de acreditar nisto?


- A contemplação, finalmente, não pode ser um tempo para esquecer o mundo e os seus problemas. É, pelo contrário, o momento por excelência para os tornar presentes. É o desafio de não buscar raciocínios e desculpas, classificar-me a mim e aos outros e não chegar a nenhuma conclusão existencial que seja capaz de transformar. Quem vê a sua verdade, pode amá-la, percebendo como esta é amada. E amando,aceitamos e perdoamos. E aceitando e perdoando, temos um coração capaz de coisas muitos grandes. O outro lado da oração é a acção do amor. E Jesus diz, mais uma vez, que pela árvore se conhecem os frutos. Aquilo que fazemos fora, mostra a qualidade das nossas raízes. Sem a contemplação, nunca teremos a possibilidade de amar radicalmente. Ficaríamos ao nível de uma filantropia de circunstância - o que em si é bom - mas não estaríamos todos naquilo que estamos a fazer.


Para resumir. O que tenho reflectido e vivido acerca da contemplação é que é um tempo que não me pertence, que não posso dominar. Que tenho que escolher ter isto como o modo de estar na Vida, aquilo que me define radicalmente. Sem uma profunda vida interior, corremos o risco de tudo ser mais um número, um obstáculo, ou um prazer efémero. Não me transformo, nem transformo. E isto está ao alcance de todos.


Finalmente, depois de ter todos estes aspectos presentes, é o tempo de começar a realizar isto concretamente. A atitude de confiança e disponibilidade inicial é o mais importante. Então, com o realismo das minhas possibilidades escolho um tempo do meu dia para esta eternidade. Quinze minutos, meia-hora, uma hora. Pessoalmente, aconselharia pelo menos meia-hora, que, sinceramente, acho muito difícil que não se tenha durante o dia. Temos sempre tempo para o que verdadeiramente queremos.


E o que fazer este tempo? Simplesmente estar, ou repassar o meu dia e o que foi acontecendo, ou meditar alguma passagem da Bíblia, ou de um livro que me ajude. Nesta altura, um bom livro sobre oração pode dar muitos bons conselhos e cada um poderá encontrar o seu modo próprio. Todos os modos de rezar são bons. Mas o que é mais fundamental é o estar presente. E certamente a nossa Vida muda, de forma imperceptível, com avanços e recuos. Mas aí está... o tempo de Deus não é o nosso tempo e os resultados d'Ele não são os nossos resultados. Estaremos toda a Vida a perceber isto e a entusiasmarmo-nos cada vez mais.


4 comentários:

susana disse...

como o meu objectivo como ser humano é chegar a estado de amor incondicional vou praticando a contemplação à minha forma. Costumo forçar-me a ver mais fundo. Sempre fui assim desde miúda, o porquê? o como? o ver fundo para encontrar no olhar dos outros as vivências que também são minhas. Um dia já não será um esforço consciente, será um modo de vida essa contemplação e sei que chegarei a esse estado puro que é o amor incondicional. Um abraço
su

Rosa disse...

Contemplar, rezar... mil modos de o fazer.
A vivência dos meus últimos cinco dias foram "são" sem dúvida, um modo "especial" de o fazer.
Quanto tenho de agradecer ao Senhor Deus pela graça de realizar tão grande sonho.
Obrigada a si também António por toda a ajuda e disponibilidade.

Tenha um bom fim de semana.
Abraços.

António Valério,sj disse...

Olá Su! Estava curioso para saber se ias comentar, porque reparo que tens uma vida interior muito atenta e gostava muito de saber o que te move. O Amor, no fundo, é o que mais nos purifica. E é o olhar deste amor que nos fala da nossa verdade... obrigado ;)

Rosa, eu é que agradeço o gosto de a conhecer e o tempo que tivemos. Fico muito feliz que tenha aproveitado assim tanto. Bom fim de semana!

Carl@ Mesquita disse...

Mesmo que o tempo se recuse a contemplar, mesmo que as horas se reduzem em minutos... mas desprendida desse tempo procuro prolongar aquela que é a minha vontade, para "olhar" à paisagem vestida de amor e entrega, com os olhos de Deus,e só assim me preencho, para renovar e transformar novas energias enriquecidos do interior.
Bjinho c/saudades*)

P.S.: Tenho estado off, mt off... com o tempo, o trabalho e até mudanças de casa:)Por isso, nada mais a propósito deste tema... Contemplação que procuro, escolho e preciso... para equilibrar, preencher e iluminar cada momento.

P.S.: ... um à parte...antigamente as pessoas, digo Famílias, estavam e juntavam-se... para ir à casa de Deus, contemplar momentos, convívios e energias para a semana?? Que valor ou valores actualmente as famílias, pessoas e sociedade em geral atribuem e este Dia, que é, ou já não, especial? ... Portanto, desejo-te UM BOM DOMINGO VALÉRIO=)

 

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